domingo, 29 de maio de 2016

Velador orientalista “garçonne et prince oriental”- Limoges, França


Peça de porcelana moldada art déco, policroma, representando um par do Próximo Oriente, de pé, com a figura masculina abraçando uma bailaria, dentro da moda “garçonne et prince oriental”. As carnações das duas figuras são ligeiramente rosadas. O homem tem barba preta e veste túnica, com capuz caído sobre as costas, de cor marfim forrada a vermelho, com motivos florais estilizados igualmente a vermelho e preto, sobre veste amarelo-torrado. A cabeça apresenta-se coberta por outro capuz, de cor marfim, decorado com motivos geométricos das cores da túnica. A figura feminina, com cabelo à garçonne apresenta-se de frente, tronco nu, com calças de balão de base marfim listradas verticalmente a ouro e verde, presas à cintura por uma faixa negra. Na mão, pendente, um leque. No fundo da base «Limoges» e assinado «Rauche». Instalação eléctrica de origem.
Data: c. 1925-30
Dimensões: alt. 31cm x larg. 13cm


Na teatralidade da representação, do gesto, a figura masculina protege e deseja a frágil jovem. Terá servido para iluminar qualquer câmara mais íntima, um quarto, talvez, de um apartamento burguês nos anos 20 ou de inícios de 30, ou de um lupanar sofisticado. Fantasia, romance, sedução, desejo, num ambiente saturado de sedas e brocados, perfumes inebriantes… tudo conjugado para uma noite memorável a dois ou será apenas ilustração de um sonho solitário de celibatário? Tantas possibilidades…

A ideia romântica que o Ocidente concebeu das «Mil e uma noites», exacerbada depois no cinema, com filmes como «The Skeik», deu origem a todo um imaginário de liberdade e fantasia que pouco estava em consonância com a realidade.

O Orientalismo foi uma moda dentro da pintura de género que atravessou o século XIX, reforçada pelas campanhas de Napoleão e que culminou com a descoberta do túmulo de Tutankamon em 1922. Um fascínio pela civilização desaparecida do Egipto Antigo misturava-se – ou emparceirava - com o mundo muçulmano. A Sublime Porta, a mítica Istambul, essa passagem entre dois mundos, horizonte recortado de cúpulas bizantinas e de émulas otomanas acrescidas de minaretes, era ainda Europa mas tinha tudo já de outro continente e de outra civilização. O exotismo de uma Ásia que alastrava pelo Sahara escaldante do Norte de África até encontrar o Atlântico. O Próximo Oriente circundava a margem sul do Mediterrâneo e esse fervilhante mundo outro, estendia-se de Marrocos à Pérsia. A expansão do Islão difundiu por todo esse vasto território certos usos e costumes, maneiras de vestir e arquitecturas. Por ser demasiado misterioso e ambíguo, terras de desertos sem fim, por vezes tão sem horizonte como um oceano, o Ocidente olhou para ele como se se tratasse de um todo uniforme com pequenas variantes.


O fascínio pelos espaços infinitos de paisagens inóspitas mas hipnóticas, ausentes de verde mas ricas na paleta de ocres. Ergs e hamadas, com ou sem ouadis, formam os desertos. Essas paisagens dunares ou pedregosas remetem para mil aventuras. Aí, encontrar ou não um poço de água ou um oásis verdejante de tamareiras e sicómoros, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, mas na ficção os heróis sobrevivem sempre e no fim têm a princesa ou o príncipe encantado dos seus sonhos nos braços. É que Xerazade, Aladino, Ali Babá, Sinbad, tapetes voadores, edifícios cúbicos, cúpulas bulbiformes, minaretes, crescentes, portas em ferradura, arcos conopiais, hammams, odores a essências preciosas e especiarias, salões ocultos pejados de ouro, diamantes, rubis, esmeraldas e safiras, e, como parte da banda sonora, o apelo do muezim, mito e realidade, tudo se funde na nossa imaginação colectiva ocidental.
Daí que sultões, paxás, odaliscas, bailarinas, vizires, encantadores de serpentes, servos de vários géneros, mercadores e mesmos populares de todo o Próximo e do Médio Oriente, inundaram um imaginário pleno de luxúria e prazeres carnais. A ideia de harém suscitava, suscita ainda, os mais loucos desejos e fantasias, sobretudo por parte da população masculina. A pintura de Ingres serviu para exaltar toda essa ideia de voluptuosidade, de corpos desnudos e paixões à flor da pele.


Em grande parte das representações ocidentais, as vestes deste outro, de uma maneira geral, amplas, tanto podiam dar a descobrir carnações como tapavam toda e qualquer curvatura de um corpo humano. É isso que podemos constactar em grande parte das artes decorativas do período Art Déco. Até porque de burca, niqab, hiyab ou chador a mulher desse Oriente é estranhamente misteriosa. Não permitindo o islamismo que a mulher mostre do corpo mais que a cara e as mãos, e, em casos mais extremos, nem mesmo isso, no resguardo de quatro paredes imagina-se que tudo se altere e atinja refinadas formas de sedução.

É deste paradoxo que o elemento feminino deste velador, talvez uma odalisca, se alimenta, sendo bem exemplo da visão distorcida que o Ocidente tinha de uma civilização que se lhe afigurava plena de sensualidade.

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